"A D. Maria tem 47 anos...e um cancro do ovário. O marido, já reformado, quis satisfazer-lhe o desejo de não morrer no hospital.Têm uma filha, a acabar o curso na universidade: boa aluna, em altura de exames...precisa de estudar e a sua mãe está a terminar os seus dias de vida no quarto ao lado. A D. Maria está em cuidados paliativos...e sabe disso!Já não quer comer, bebe apenas alguns goles de água. Tem um soro para que lhe possamos dar a medicação. Tem uma perfusão permanente de morfina, cuja eficácia não é total. A barriga...como descrever? Tem uma colostomia, que mal funciona...está inchada, como um balão que vai rebentar...e de facto, começa a rebentar: abrem-se fístulas espontaneamente e as fezes saem por todo o lado.O cheiro? Não consigo descrever! O corpo? Pele e osso, para ser mais exacta!Há metástases no fígado, no pulmão...a respiração é ofegante...já lávão 5 semanas...Diariamente desloco-me a casa da D. Maria, duas ou três vezes: para dar medicação, para cuidar daquela barriga...para falar com ela, para dar o apoio possível ao marido que tenta fazer o que sabe e o que pode.
O sofrimento? É grande...de todos!
Mas eu sou enfermeira: não é suposto que me seja difícil ver o sofrimento dos outros!
Tudo se torna mais difícil quando estou a sós com a D. Maria, que me agarra na mão e me pede insistentemente...que termine com a vida dela!Os apelos são cada vez mais frequentes, mais desesperados: "Por favor! Se tem compaixão de mim, injecte-me qualquer coisa para terminar de vez com esta agonia! Pela sua felicidade, por favor, acabe com a minha vida..." E eu tenho compaixão...mas nada posso fazer! A dor não se consegue controlar, é impossível cuidar dela sem lhe provocar ainda mais dores?
O que faz uma enfermeira? Vai-se embora, para casa, a sentir-se inútil...A sentir-se incapaz...A ouvir repetidamente aquele apelo...e a desejar, embora lhe custe muito, que a eutanásia fosse possível! Mas, se fosse possível...e a praticasse, como iria para casa?Mas para quê falar disto?...
Os enfermeiros não têm sentimentos!
Saio dali, continuo o meu trabalho domiciliário: agora entro numa barraca, onde chove dentro, onde há ratos, pulgas, lixo...onde o cheiro nos faz perder o apetite...O Sr. José tem 87 anos e vive sozinho. Tem uma úlcera varicosa. Tenho que fazer o penso. Não há água...nem sequer as mãos posso lavar. Passo-as por álcool à saída e lavo-as na casa do próximo utente.Chove desalmadamente. Volto para o carro, pelo meio da lama. Carrego as malas do material para os cuidados.
Mas para quê falar disto?...A minha profissão não é penosa!...
Próxima paragem: D. Joaquina, 92 anos, vive numas águas furtadas, 5º andar, sem elevador. Subo as escadas de madeira, apodrecidas, obscuras, com medo que alguma tábua se parta. Carrego com as malas do material...A D. Joaquina vive com uma irmã, naquele espaço exíguo. Teve uma trombose. Tem úlceras de pressão. O tecto é baixo, inclinado, a cama está encostada à parede. Para lhe prestar cuidados tenho que me pôr de joelhos no chão e ficar inclinada.Quando me tento endireitar as minhas costas doem...tenho as pernas dormentes...pego nas malas, desço as escadas...continua a chover...procuro o carro que tive que estacionar a 500 metros!
Mas, para quê falar disso? Os enfermeiros não se queixam...
Próximo desafio: a Helena! Toxicodependente...tem SIDA, continua a consumir...com sorte, ainda lá encontro o traficante em casa...mas as enfermeiras não têm medo!
Continuo: o Sr. Manuel é diabético, divorciado, tem 50 anos, foi amputado de uma perna, vive sozinho num 3º andar. Há 2 anos que não sai de casa: como fazer? Das poucas pessoas, com quem convive, são as enfermeiras! Precisa de conversar...como lhe dizer que ainda tenho mais 4, ou 8 pessoas e que não tenho tempo para estar ali a ouvi-lo?
Mas para quê falar disso? Os enfermeiros só dão injecções e fazem pensos...tudo o resto é supérfluo!
Para quê falar da solidão do outro, da minha impotência, do pedido de eutanásia, da chuva, do frio, do sol, do calor, do mau cheiro, das minhas dores nas pernas, do material do penso a conspurcar o meu carro (a seguir vou buscar a minha filha à escola!), das dores nas costas, do medo, da insegurança, do ventre desfeito, da tristeza, da compaixão...Não, a penosidade e o risco devem ser uma ilusão minha...
Não, as enfermeiras não choram!
Mas sabem?... as lágrimas que mais doem são aquelas que não correm!"
...o texto não sei quem o escreveu, li-o num diário de uma colega e não resisti a fazer dele o meu post de hoje...
Sem palavras.
domingo, 28 de dezembro de 2008
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5 comentários:
Belo texto... gostei muito.
=(
Contam-me inúmeras histórias assim, conheço vários enfermeir@s, muitos deles ainda estudantes.
É preciso ter garra, é preciso ser-se muito humano, ter o sangue frio na altura devida. Mas é preciso saber chorar para expulsar tudo o que os olhos sentem e o coração não sára. É preciso saber dar e desfaser nós na garganta. É preciso saber ser-se actor no mundo real. E para tudo isso é preciso ter-se vocação e um grande grande valor como ser humano. Noto-o mais nuns que noutros. Eu seria incapaz de tal profissão, confesso. O meu coração é pequeno de mais para tão grandes feitos.
Mas tenho uma grande admiração de quem arrisca, de quem vê e passa pelas situações e nunca desiste. Que de todo o mal que vê, o vê apagado aquando aqueles sorrisos de graditão eterna se esboçam no dia-a-dia.
E eu acho que serás grande! Acho mesmo. Não te conheço assim muito bem, mas sempre cresci a saber avaliar bem as pessoas, e não acho que me esteja a enganar desta vez.
Tu serás daquelas enfermeiras que nós utentes desejamos que nos calhem. Porque há sempre aquelas que enfim, mais valiam ir para casa se é para tratar dos pacientes daquela maneira.
Tenho uma grande amiga que também como tu é ainda uma estudante. Mas quando falo com ela, quando ela me conta certas cenas tão desanimada, tão triste, tão revoltada como as coisas por vezes se fazem... Mesmo assim, noto aquele brilho de quem tem sede por fazer as coisas bem. Que não desiste, que quer tomar posição. E isso faz-me sentir seguros. Pois alunos como esta moça é quem me faz ter a esperança que quando precisar serei bem atendida.
O texto é de facto muito tocante.
Beijo ***
Emocionei-me mesmo muito ao ler o texto... tou sem palavras... já tive várias situações em hospitais e digo-te que nessas situações de aperto em vez de sentir o grande apoio da familia, tive sim o grande apoio das enfermeiras, continuo a lembrar-me delas como anjos que nos fazem tudo para ajudar.
Apesar de todas as enfermeiras não serem assim, essas prefiro não lembrar... para mim num internamento o médico encaminha para dar saúde, mas as enfermeiras são as que nos dão saúde... e só mesmo elas para nos por a rir e bem dispostas quando só nos aptece chorar.
As minhas situações foram no hospital do Barreiro e posso dizer que lá existem anjos a trabalhar...
'O enfermeiro não chora. O enfermeiro não sofre. O enfermeiro dá injecções e faz pensos.' Opinião mais que generalizada. Mas sabes que mais ? A experiência ainda é minima, apesar disso vale a pena cada sorriso que se esboça, cada agradecimento pronunciado: 'obrigada menina, que o seu curso corra bem.. não mude, precisamos de muita gente como você!'. Vale a pena, vale mesmo a pena. São os grandes enfermeiros que mudam estas opiniões... E nós um dia havemos de o ser. Grandes enfermeiras. Sim porque ser enfermeira não chega, é preciso ir mais além.. muito mais, e por muito que se vá nunca será o suficiente.
Penso assim, e só peço que nunca deixe de pensar desta forma.
Um penso nunca será só um penso!
Hoje vi uma reportagem sobre cuidados paliativos em que uma senhora dizia: 'Ela viveu mesmo com a morte diante dela, agradeço à enfermeira, do fundo do coração por nunca a ter visto como um orgão ao contrário do médico.. por ter dormido ao lado dela, por ter estado com ela até ao seu ultimo suspiro...'
Faço, à maneira da ESESJD, um grande Alá ( xD ) a essa enfermeira.
Vamos ser como ela prima, porque é para isso que nos matamos a estudar para disciplinas que nos parecem uma estupidez, e para as outras que nos fazem algum sentido!
Somos grandes A/E :p, e vamos ser grandes enfermeiras, sei que sim! :)
SEm duvida um post brilhante.A minha pergunta é inevitavel...e se me acontecesse a mim...como reagiria?O que faria?
Apercebo-me que nem nunca me passou pela cabeça...
Voltarei.
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